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Filosofia da Guerra x Favelas
É bom que fique claro que as favelas do Rio nunca declararam guerra a ninguém. Nossa guerra sempre foi pela sobrevivência, pelo pão de cada dia, pelo futuro de nossos filhos, pela melhoria em nossas comunidades… Somos 1/3 da população do Rio composta por 99,9% de cidadãos e cidadãs honestas e trabalhadoras.
Apesar de tudo, somos a parcela da sociedade que mais sofre com a ausência do Estado. Costumamos dizer na FAFERJ (Federação de Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro) que somos cidadãos sem Estado. Somos cidadãos porque cumprimos a lei, pagamos nossos impostos e trabalhamos muito para contribuir com uma sociedade melhor. Também somos cidadãos sem Estado na medida em que as políticas públicas são negadas a nós. Vivemos na favela sob a concepção neoliberal de intervenção estatal mínima, onde a Polícia Militar é muitas vezes o único contato que temos com o ente público.
Não somos ingênuos, sabemos do nosso potencial revolucionário, somos a força de trabalho que move a cidade e o país, produzimos e prestamos serviços em quase todos os setores da economia. O sistema também não é ingênuo, ele sabe que nossa miséria gera um grande capital político sistematicamente explorado nas eleições burguesas de quatro em quatro anos. Dessa forma, a atuação do poder público sob a ideologia da guerra nas favelas é uma ação deliberada que visa nos desnortear. Os governantes precisam nos manter dispersos, fragmentados, com medo e com fome para nos dominar. As UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) são uma demonstração clara dessa filosofia. Uma política de segurança fracassada, uma cópia barata do Plano Colômbia, implementado pelos Estados Unidos nesse país com o objetivo de aumentar seu controle político e militar sobre a América Latina. Até mesmo do ponto de vista militarista as UPPs foram um desastre. A bandidagem continuou dominando a favela, pois a polícia não conseguiu dominar de fato o território. Isso mostra a ineficiência da filosofia da guerra.
O genocídio da juventude negra também é uma forma de dominação do Estado na favela. A ausência de políticas sociais associada à crise da farra fiscal no Rio faz proliferar a violência. A falta de perspectiva de vida faz a juventude mergulhar de cabeça no tráfico de drogas aumentando ainda mais as estatísticas do extermínio de nossos jovens. Infelizmente as bocas de fumo contratam durante 365 por ano, 24 horas por dia. Essa triste realidade poderia ser mudada com o mínimo de investimento no social, mas a política de extermínio sob a filosofia da guerra é a única política que o Estado apresenta para os jovens negros, pobres e favelados. Uma ação genocida, racista e fascista.
Apesar do Brasil ser o segundo maior consumidor de cocaína do mundo, a nossa sociedade não se permite discutir a legalização ou a descriminalização das drogas e a desmilitarização da polícia. A burguesia e a classe média têm horror à favela, mas são os maiores consumidores das drogas vendidas lá. A galera do “nariz nervoso” é cruel. Discurso moralista e hipócrita definitivamente não ajuda em nada no debate sobre entorpecentes e violência.
A estrutura militar da nossa polícia coloca o morador de favela na linha de tiro. Na concepção militarista de segurança todos são inimigos. A figura do inimigo é ponto central na filosofia da guerra adotada pelas forças de segurança nos morros cariocas. O problema desse tipo de concepção é colocar o morador e a comunidade como alvos. Na visão dos agentes da repressão, bandidos e moradores são “farinha do mesmo saco”. As ações são sempre marcadas pelo autoritarismo, uso desproporcional da força, violência e falta de diálogo.
As ocupações militares em favelas são caras, ineficientes e letais. A filosofia da guerra só traz a morte para as comunidades. A guerra nada mais é que fazer política através da força. Precisamos na verdade de creches, escolas, hospitais, postos de saúde, urbanização, esgoto, luz, água… Pode parecer clichê, mas a solução é essa. São políticas que só dão resultado a longo prazo e precisam ser aplicadas de forma conjunta. Na visão dos políticos a favela é um lugar de angariar votos e barganhar com a miséria do povo. Não há um projeto por parte do Estado para romper com a estrutura de pobreza da favela. Precisamos de um projeto de Nação que inclua a favela. O último projeto de Nação iniciado pelo então presidente João Goulart foi rompido pelo golpe civil militar de 1964 e nunca foi retomado. As reformas urbanas nunca saíram do papel. De lá pra cá o que vimos foi uma brutal concentração de renda na mão dos ricos, aumento da desigualdade social, crescimento da violência e corrupção.
Nas décadas de 1980 e 1990, o governo estadual de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro no Rio de Janeiro lançou o projeto dos CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública), que consistia em dar aos mais pobres ensino de qualidade em tempo integral. Esse projeto desafiou os interesses das elites brasileiras e da mídia, em especial a Rede Globo. Os CIEPs foram sabotados, a propaganda midiática contra Brizola era feroz. Diziam que os CIEPs custavam muito caro e que Brizola defendia bandido. Tudo baboseira… As elites brasileiras jamais deixariam que sua mão de obra barata e força de trabalho rompesse com a estrutura de exploração.
Com o tempo, a burguesia nacional tornou-se cada vez mais parasitária. As nossas elites não têm nenhum tipo de relação com nosso país, com nosso povo, com nossa cultura. O objetivo deles é sugar ao máximo nossas riquezas e aumentar seus lucros exorbitantes. É dessa forma que nosso ouro, nosso minério, nosso petróleo é vendido a preço de banana para os gringos. O dinheiro que deveria ser investido nas favelas vai pelo ralo das privatizações, corrupção e negociatas da burguesia.
Na favela recebemos ataques de todos os lados. A esquerda bem intencionada tenta nos ganhar entre uma ciranda e outra, a direita predatória tenta nos comprar na cara de pau mesmo, o Estado se omite do seu papel social, a sociedade nos olha com preconceito e medo, a mídia bate recordes de audiência quando a “bala perdida” mata alguém nas comunidades, a bandidagem domina o território que deveria ser do Estado, aterrorizando o morador e a polícia age como grupo de extermínio. Achou complicado? Imagine morar em um lugar desses… somos heroínas e heróis da resistência.
A FAFERJ luta há 54 anos pelas comunidades. Nossa principal função é fundar e regularizar as associações de moradores. A luta por cidadania nas favelas é uma luta coletiva, temos que estar organizados para reivindicar nossos direitos. Fazemos a nossa parte, mas é dever do Estado implementar as políticas públicas nas favelas. Nossa constituição garante a moradia, a saúde, educação, emprego. A política do “cada um por si, Deus por todos” não funciona na comunidade. “A mão invisível”, o livre mercado, Estado mínimo… isso tudo é balela. Devemos abraçar o espirito comunitário nas favelas.
Invadir a favela com um tanque de guerra não é uma decisão militar; é uma decisão política do Estado. Precisamos estar mais atentos e atentas aos discursos que estão rolando por aí. Você tem todo direito de não gostar de política, não falar de política e não votar em ninguém, mas essa é a melhor saída? A grande mídia manipula a política, os grandes empresários financiam a política e os políticos formulam as políticas. Lembre-se sempre disso quando um tanque de guerra invadir sua comunidade. Somos o povo, somos a maioria e temos a força. Temos que mostrar para eles que a filosofia da guerra é inútil para as favelas.
Você está de saco cheio da política, né? Nós também, mas não podemos cair nesse papo coxinha da “não-política” que está em alta no momento. Como já dissemos antes, a filosofia da Guerra é uma política, é a política da força. Se esquivar do processo político de nosso país não adianta. Temos que ler, nos informar, pesquisar e participar mais da vida política. A vida e morte na favela é decidida no jogo político. Não podemos deixar que a nossa vida seja decidida sem nossa participação.
* Fillipe dos Anjos é Secretário-geral da Federação de Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ)